A importância estratégica do comércio para a União Europeia
Na edição deste mês, abordou-se em diversas notas o papel estratégico do comércio internacional para a União Europeia (UE). O contexto global está em transformação, entre outros motivos por mudanças de natureza geopolítica, e já são visíveis alguns impactos sobre as dinâmicas de comércio e investimentos internacionais. A União Europeia, uma potência econômica, possui muitas razões para defender o conjunto de regras e instituições que viabilizam a globalização econômica das últimas décadas. O que a UE vem fazendo nesse sentido, dentro de suas limitações externas e internas?
O comércio internacional desempenha um papel fundamental na economia da UE. Conforme dados de 2017, o bloco foi o 2º. principal exportador do mundo (16% das exportações globais, atrás da China, com 17%) e o 2º. maior importador (15%, atrás dos EUA, com 16%). A evolução da participação no comércio internacional revela que, ao longo da última década, a UE perdeu a posição de principal exportador e importador global.
Em 2017, o total do comércio internacional da União Europeia com terceiros países (comércio extra-UE) atingiu EUR 3,737 trilhões, dos quais EUR 1,858 trilhão foram importações e EUR 1,878 trilhão, exportações, gerando saldo favorável de EUR 19,729 bilhões. A China foi a principal origem das importações, seguida dos EUA. Por sua vez, os EUA foram o principal mercado de destino das exportações da UE, seguidos pela China.
Entretanto, a maior parte do comércio dos países da UE está dirigido a outros países do bloco (comércio intra-UE). Praticamente todos os membros da UE exportam mais para o chamado “mercado interno” do que para terceiros mercados. Mesmo em uma potência exportadora como a Alemanha, onde o comércio exterior corresponde a aproximadamente 60% do PIB, as exportações para o bloco representam cerca de 60% do total. Essa característica reflete a importância concreta da integração europeia, que impulsiona o entrelaçamento dos mercados nacionais, ao mesmo tempo em que estimula os membros da UE a preservar ¾ e, ocasionalmente, aprofundar ¾ as conquistas que advêm do mercado comum. Ajuda a explicar, em certa medida, os debates sobre o interesse britânico em manter o acesso ao mercado da UE, mesmo após a saída formal do bloco.
A fim de garantir e ampliar o acesso a mercados externos, a estratégia comercial da UE tem privilegiado, com variadas ênfases ao longo dos anos, a atuação nos âmbitos multilateral e regional. A UE foi e continua sendo um ator-chave na Organização Mundial de Comércio. Ao mesmo tempo, explora a via dos acordos comerciais, sobretudo diante da dificuldade de avançar nas negociações multilaterais. Na gestão da atual Comissária de Comércio, Cecilia Malmström, foram concluídas negociações de acordos com o Vietnã, Singapura, Canadá, Japão e México (modernização de acordo anterior). Foram lançadas negociações com o Chile (modernização), Austrália e Nova Zelândia e retomadas as negociações com o Mercosul. Estavam relativamente avançadas as negociações da Parceria Transatlântica (TTIP), entre UE e EUA, quando foram interrompidas pelo Presidente Trump logo após sua posse em 2017.
Além da abertura de mercados, a UE vale-se dos acordos comerciais para promover padrões regulatórios europeus. Um dos exemplos mais típicos a esse respeito são as “indicações geográficas” (IGs), pelas quais produtores europeus, predominantemente do setor agrícola, buscam diferenciar seus produtos pela agregação de valor a fatores como qualidades atribuídas ao local onde um produto é fabricado. Como fruto de estratégias de promoção do produto europeu, como são as IGs, assim como políticas de incentivo e da ação dos próprios produtores europeus, a UE se converteu nos últimos anos no principal exportador mundial de produtos alimentícios, em particular produtos agrícolas processados. O perfil exportador tem ganhado relevo e os saldos no comércio exterior desses produtos têm sido favoráveis à UE. Essa mudança sugere que a UE poderá vir a ser menos defensiva em negociações futuras na área agrícola, algo que já se começa a perceber nas tratativas em matéria de produtos agrícolas processados.
Apesar da intensa atuação comercial, a posição da UE como uma potência econômica vê-se desafiada pelo contexto político global, assim como por pressões de dentro do bloco.
No âmbito multilateral, especificamente na Organização Mundial do Comércio, a UE tem procurado atuar como um articulador das diversas posições existentes entre os Membros, a fim de disparar um processo de reforma que mantenha o protagonismo da instituição, que é de interesse crucial europeu. Em setembro deste ano, a UE circulou proposta para modificar o funcionamento do sistema de solução de controvérsias da OMC e aprimorar a transparência no cumprimento dos acordos internacionais administrados pela organização, além de atualizar as regras sobre comércio internacional.
No âmbito bilateral, sendo EUA e China os principais parceiros comerciais da UE, é natural que os atritos entre as duas maiores economias globais afetem igualmente o bloco europeu. A UE sofre, especialmente, com a ameaça do governo norte-americano de impor tarifas sobre produtos automobilísticos europeus. Os EUA são o principal comprador de veículos europeus, com exportações, de EUR 38 bilhões em 2016 (EUR 22 bilhões com origem na Alemanha). A fim de evitar essa restrição ao comércio, a Comissão Europeia iniciou tratativas, ainda informais, para um eventual acordo comercial bilateral, cujo desenlace ainda é incerto.
A China ganha destaque na agenda econômica da UE essencialmente de duas formas, que estão relacionadas. Em primeiro lugar, países como a Alemanha e a França têm manifestado preocupação com o aumento significativo de investimentos chineses para a aquisição de empresas europeias em setores considerados estratégicos. Há o temor de que a UE perca liderança em determinadas tecnologias, com consequências estratégicas e econômicas. Os investimentos chineses na UE foram de EUR 30 bilhões em 2017 (68% originários de empresas estatais), e EUR 36 bilhões em 2016. Em reação a essa percepção, a União Europeia está finalizando a tramitação de regulamento que estabelecerá mecanismo de escrutínio de investimentos (“investment screening”) para examinar fluxos de investimentos estrangeiros no bloco sob a ótica de segurança e proteção de “infraestruturas críticas”. Em segundo lugar, a UE reclama de falta de reciprocidade para suas empresas atuarem na China. É cada vez menor a confiança do empresariado europeu para atuar no mercado chinês, e os fluxos de investimentos europeus para a China têm diminuído: foram de EUR 8 bilhões tanto em 2016 quanto em 2017 (em comparação, a UE mandou EUR 33 bilhões em investimentos ao Brasil em 2016). Há uma negociação UE-China na área de investimentos, mas os avanços têm sido reconhecidamente lentos.
No âmbito interno, a UE enfrenta crescente resistência à assinatura de acordos comerciais, um elemento importante para a expansão da economia europeia, como assinalado antes. O acordo com o Canadá (CETA – Comprehensive Economic and Trade Agreement) teve sua tramitação ameaçada por conta do parlamento regional da Valônia (região da Bélgica) e até hoje aguarda ratificação em vários legislativos dos países da UE (encontra-se em vigência provisória).
O contexto político global é desafiante para uma potência comercial como a UE, especialmente porque o que está em jogo excede a esfera econômica. Apesar disso, a magnitude da economia europeia, assim como a contribuição que segue prestando em setores estratégicos como o de inovação, garantirá ao bloco a capacidade de exercer influência sobre os rumos da economia global.